Sociedade do risco: tecnologia e resposta penal como ameaças

AutoreFelipe Cardoso Moreira De Oliveira
CaricaAdvogado. Mestre em Ciências Criminais pela Pontificia Universidade Catàlica do Rio Grande do Sul, Professor de Direito Penal na Universidade Federal de Santa Catarina, Expresidente do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais - ITEC e Colaborador Permanente da Revista Brasileira de Ciências Criminais.
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@1. Introdução

O final do sóculo XX foi marcado por um avanço tecnológico de alta velocidade, pelo encolhimento de restriòões alfandegárias e de barreiras culturais e económicas, pela necessidade de informação e facilidade de acesso, tanto físico como virtual, aos mais distantes pontos do globo terrestre. Somado a isso o desenvolvimento dos meios de comunicação foi capaz de trazer às salas de nossas casas, em tempo real, cenas de fatos que geraram horror, alegria, revolta e congraçamento, ocorridos nos mais diversos e distantes cantos do planeta. A concepção de mundo passa, hoje, pelo tubo de raios catàdicos. Segundo Bauman1 "a informação agora flui independente dos seus portadores: a mudança e a rearrumação dos corpos no espaço físico é menos que nunca necessária para reordenar significados e relações".

O maior responsável por estas mudanças de final de milênio, sem dúvida, foi o desenvolvimento da tecnologia informática e a conseqüente massificação da utilização dos computadores. Máquinas gigantescas utilizadas para a realização de cálculos e limitadas a um ramo específico de atividades, transformaramse hoje em equipamentos portáteis capazes Page 122 de proporcionar acesso de um ponto aleatàrio a qualquer lugar do planeta. Percebese claramente, no início do século XXI, que tais equipamentos deixam de se constituir em ferramenta de utilização endógena para funcionar como elemento exógeno, ou seja, não mais restrito ao microuniverso hardware da máquina do usuário, mas servindo de meio de comunicação entre pessoas, empresas, organizações não governamentais, instituiões públicas e privadas, além de ferramentas de desenvolvimento de técnicas utilizadas no macrocosmo.

As mais banais atividades do cotidiano, como a compra de produtos em um supermercado, envolve a utilização de componentes informáticos. Da mesma forma, cumpre lembrar seu caráter fundamental na exploração interplanetária. Há poucos anos fomos surpreendidos em nossas casas com imagens transmitidas diretamente do planeta Marte e, periodicamente, nos são trazidas imagens dos pontos mais distantes da galáxia. Tal acesso e permeabilidade macrocósmica somente se verifica a partir do desenvolvimento da tecnologia informática. O computador passou a ser fundamental no progresso da humanidade e na facilitação das relações sociais.

@2. O indivíduo e a socialidade, mudanças dos paradigmas sociais: tribo e rede

A matriz fundacional do direito material e processual penal encontrase nos ensinamentos iluministas e como tal, qualquer tentativa de alteração ontológica ou principiológica da mesma não se constituiria em evolução ou desenvolvimento penal, mas em sua pura e simples destruiòão.

Comparativamente, do ponto de vista de compatibilidade entre o Direito Penal e a criminalidade informática, encontramos uma ciência que possui como base fundamentos do final do século XVIII frente á um desenvolvimento tecnológico ímpar, verificado entre as duas últimas décadas do século XX, sendo possível a modificação da realidade em um canto qualquer do planeta sem que tenhamos que percorrer a distància física que nos separa do nosso objetivo.

Vivemos mais um momento de ruptura histàrica. Dentro de uma visão artificial de eras ou idades a mudança da Idade Contemporánea para outra Idade Histàrica se verifica a partir da massificação tecnológica, da compressão do espaço pelo tempo e da diminuição das fronteiras, Page 123 verificada, concretamente, com a criação da Comunidade Européia2. Verifica-se hoje maior permeabilidade de políticas e culturas por toda a extensão do globo, percebe-se uma uniformização económica e cai por terra a percepção social do indivíduo como o possuidor dos direitos e interesses mais relevantes em favor da sociedade. O indivíduo perde sua importància, desfalece frente "quilo que Maffesoli denomina de socialidade3 " uma tendência ao agrupamento em torno de um referencial emocional comum. Emergente, portanto, a contradiòão ao racional, fundamento do individualismo.

O Estado Moderno se funda na existência do indivíduo. A sociedade adquire como característica a horizontalidade, rompe com o verticalismo estrutural, acabando com a hierarquia pré-determinada, com a cultura estamental. Na visão moderna, todos nascem livres e iguais tornando possível a individuação dos integrantes da sociedade. A idéia de formulação de um contrato social pressupõe, segundo Locke, a defesa dos direitos e interesses do indivíduo, ou seja, a sociedade política existe para garantir os direitos particulares. "Locke humaniza a idéia de poder, que se torna secular e "moderna". (...) O que há é o direito de cada homem, que cede livremente certo poder a um governo para que garanta a vida em sociedade"4. O contrato é feito por homens livres e racionais.

Necessária, portanto, na idéia de contrato social, a concepção de igualdade, sendo seu fundamento o elemento que diferencia um indivíduo do outro - a razão. Surge o homem individual.

Como ressalta Louis Dumont, "o individualismo subentende, ao mesmo tempo, igualdade e liberdade". Page 124

"A partir do momento em que não mais o grupo mas o indivíduo é concebido como o ser real, a hierarquia desaparece e, com ela, a atribuição imediata da autoridade a um agente de governo. Nada mais nos resta senão uma coleção de indivíduos, e a construção de um poder acima deles só pode ser justificada supondo-se o consentimento comum dos membros da associação"5.

Omo mencionado, até o surgimento dessa nova concepção, a sociedade era estruturada de forma vertical, caracterizada pela fixidez. O principal valor dessa teoria é a organização social e sua estrutura arquitetànica. Desde a verificação da rigidez e hierarquização das camadas sociais, até a análise artàstica do medievo se percebe a subordinação e o respeito das pessoas pela classe social superior, pelo Estado e pelo poder divino.

Sob o viés arquitetônico, o peròodo românico6 caracterizase por um aumento na quantidade de igrejas construídas, bem como de suas dimensões e complexidade - passou-se a utilizar abóbodas nas naves7. A grandiosidade e a direção (verticalizada) das construções demonstram a cultura hierarquizada e a busca constante de Deus. Além disso, a opressão do poder religioso sobre os fiéis tornava-se mais presente a partir do sentimento de inferioridade e de temor ao Senhor concretizados pela desproporção pessoa-monumento.

A arquitetura gótica, mantém a desproporção entre o Deus/Estado e o fiel/súdito. Surgida entre 1137 e 1144, na construção da Abadia Real de Saint-Denis, apresenta no verticalismo sua característica. A Catedral de Notre-Dame, 1163, reflete como nenhuma outra os principais traços da Abadia, a qual derivava das fachadas românicas normandas8.

"No interior, ainda encontramos como ecos do Românico normando, a nave de abóbadas sexpartidas e os tramos quase quadrados, além das tri- Page 125 bunas sobre as primeiras colaterais. As grossas colunas das arcadas da nave também obedecem à tradiòão. Mas as grandes janelas do clerestàrio e a leveza das formas adelgaçadas criam um inconfundível efeito gôtico (note-se como parecem finas as paredes da nave). Gôtico é, à mesma, o «verticalismo» do espaço interior"9.

Finalizando a análise arquitetànica-social, a catedral de Reims, construída trinta anos após a conclusão da Notre-Dame, apresenta linhas verticais nos mínimos detalhes, tendo "a galeria de estátuas régias (uma incisiva faixa entre os portais e a rosácea, em Notre-Dame), foi elevada até se fundir com a arcada superior; todos os pormenores, com exceção da grande rosácea, se elevam e adelgaçam; uma floresta de pináculos acentua esse movimento para o alto"10.

O coletivo voltado para o Estado, servil ao poder social e espiritual. Não existia a figura do indivíduo, apenas o coletivo. O homem nascia na comunidade e sua identificação e futuro já estavam estabelecidos; havia uma predeterminação de seu papel social, imutável.

"As transformações associadas à modernidade libertam o indivíduo de seus apoios estáveis nas tradiòões e nas estruturas. Antes se acreditava que essas eram divinamente estabelecidas; não estavam sujeitas, portanto, a mudanças fundamentais. O status, a classificação e a posiòão de uma pessoa na "grande cadeia do ser" (...) predominavam sobre qualquer sentimento de que a pessoa fosse um (...) "indivíduo soberano"11.

Como ressalta Hall12, "muitos movimentos importantes no pensamento e na cultura ocidentais contribuíram para a emergência dessa nova concepção: a Reforma e o Protestantismo, que libertaram a consciência individual das instituiòões religiosas da Igreja e a expuseram diretamente aos olhos de Deus; o Humanismo Renascentista, que colocou o Homem no centro do universo; as revoluções cientàficas, que conferiram ao Homem a faculdade e as capacidades para inquirir, investigar e decifrar os mistérios Page 126 da Natureza; e o Iluminismo, centrado na imagem do Homem racional, cientàfico, libertado do dogma e da intoleráncia, e diante do qual se estendia a totalidade da histària humana, para ser compreendida e dominada".

O "indivíduo soberano", portanto, se percebe no momento histàrico localizado entre a Reforma e o Iluminismo, rompendo com a estrutura existente. Importante salientar, tambén, os ensinamentos de Guilherme de Occam que, já no século XIV, afirmava: "As coisas s" podem ser, por definiòão, "simples", "isoladas", "separadas"; ser é ser único e distinto...na pessoa de Pedro nada mais existe senão Pedro". Occam negava inclusive a existência real da "ordem franciscana", afirmando, em sua polêmica com o Papa, que o que existia eram apenas monges franciscanos dispersos pelo continente europeu13.

As novas concepções de indivíduo atreladas ao colapso da ordem social, económica e religiosa medieval sedimentaram a concepção de ser a pessoa o elemento central do Estado moderno.

Assim, no final da idade média a hierarquização social desaparece. O indivíduo é concebido como real, estabelecido sobre a razão e a liberdade. A classificação e a...

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